quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

Conversa peripatética displicente




A Gilson Sobral, na efeméride de 10 anos de criação do Círculo de Estudos
Clássico de Brasília, em torno de seu fundador

A meu velho amigo Haroldo Couto


             — ... Schelling fala em mentalidade infantil dos povos quando se utilizam da mitologia como sua história...
             Nesse dia unimo-nos, eu e o músico, ao professor em sua caminhada matinal. Íamos pela calçada no alto das quadras 700 norte, em direção ao centro. Tudo muito molhado. Com o sol, a terra transpira.
             — Mas, “caro jovem” – intervim –, o Schelling estava imerso no mundo da razão.
         Um poodle e sua obesa senhora vinham em sentido contrário. O bicho foi direto à poça d`água bem à frente, quando a senhora percebeu ainda puxou a coleira. Ralhou com o bicho, agora branco e marrom, as fitas azuis atadas à cabeça.
— É verdade. Ele foi o último a intentar um sistema filosófico. Lévy Bruhl bem o percebeu, tanto que preferiu o termo “mentalidade pré-lógica”. Eu prefiro falar “regime de fascinação” como Walter Otto.
            O músico, após cruzarmos uma rua, atalhou:
— Já Nietszche fez o caminho reverso, foi desconstruindo da atualidade à antiguidade, e de lá ressurgiu com a sua doutrina dionisíaca anticristã.
— Ele estava muito irritado com a cristandade, e não disse as coisas com clareza, deixou espaço para o nazismo apossar-se dos seus conceitos, como o super homem.
Opinei eu:
— O Celso Lafer, por esses dias, falava algo parecido, com relação às ações do Wikileaks; disse mais ou menos que Kant colocou a publicidade como critério da moralidade e que aquilo que não pode ser submetido ao crivo público não deve ser moral.
        O dia está firme e o céu limpo, os mosquitos, besouros, moscas, abelhas, zumbem por todos os lados, alguns carros passam rente ao ciclista que ocupa o meio de uma das faixas, disputando em pé de igualdade o espaço de trânsito.
— O que nos traz, professor, de volta ao super homem, emenda o músico. Ao super homem é permitido destruir todos os fracos, seja lá o que isso signifique.
O professor irrompe:
         — Ele deu margem para o arianismo incorporá-lo a seu discurso. Hitchcock filmou esse tema em Festim Diabólico.
Eu voltei ao meu assunto:
— E não agem assim as nações desenvolvidas? Ordenando à Interpol um alerta vermelho contra o diretor do Wikileaks?
Mas o tempo voa, e então nos encontramos já na beira do Eixo Monumental, onde o trânsito está parado num longo congestionamento. Alguns motoristas, irritados, buzinam, o movimento das filas é quase nenhum. Decidimos atravessar, chegar até a Torre de TV. Enquanto estamos entre os carros, o movimento é retomado, mas ainda assim avançamos, até o outro lado da pista.
O professor aponta:
— Vejam, ali vai um diógenes, certamente mais feliz do que todos nós, mas igualmente lutando por sua liberdade.
        O diógenes de então é um morador de rua, andrajoso e ensebado como o seu cachorro branco encardido, coça a cabeleira desgrenhada e a barba intonsa enquanto gesticulava com a outra mão contra os carros em movimento, que lhe bloqueiam a passagem, como se fora contra Alexandre tapando-lhe o sol.
Um caminhão basculante põe-se, abrupto, em movimento.
A lona da caçamba de entulho soltou-se, e uma chuva de papel picado, de todas as cores, voa sobre os carros e o asfalto, sobre nós, sobre diógenes e seu cão, entre o sol e o céu num quase 31 de dezembro.
— Meus caros, o filósofo é esse viajante que, durante a tempestade, recolhido ao abrigo, nada pode contra a desgraça que atinge os outros senão observar.

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Noite de um feriado em novembro



            Noite, noite parada de um feriado de segunda-feira de novembro. Tudo muito úmido, o ar frio, mas tudo exsuda. Na 304 norte, num dos prédio com sacadas amplas, quase todas envidraçadas, alguns proprietários ainda preferem o espaço aberto, como nesta varanda suavemente iluminada no terceiro andar. Os jardins transpiram no nível do chão. No terceiro andar, são as copas das árvores, mariposas e insetos, morcegos esvoaçam.
Na varanda do terceiro andar, o silêncio é entrecortado, há conversação, há pausa, riso baixinho. Entre vasos de plantas, afagos no sofá pequeno, um homem e uma mulher, na mesa do canto gelo derretido num copo de uísque, uma taça de vinho pela metade, copos d`água mineral, um cigarro marcado de batom esmagado no centro do cinzeiro, as bocas encontra-se entre os casos que contam um ao outro, as almas aquecem-se no toque recíproco dos amantes.
            No amplexo e no beijo prolongado abrandam as arestas, procuram afastar diferenças. Soltam-se momentaneamente, uma pausa breve. O homem diz então:
            ­— Meu corpo é torpe.
            O da mulher não. Seu corpo construiu-se no espaço dos quarenta e três anos. A curva suave do abdomem, quadril e cintura, coxas e peitos, ombros, impõem a postura altiva e equestre. O arco do pescoço à nuca opõe-se no perfil ao sinuoso que desce da raiz dos cabelos ao nariz, mais largo que proeminente, aos lábios grossos de sorriso aberto em língua e dentes, até o queixo. A pele negra bem tratada, à mulher apraz-lhe a estética sensorial que encontra nas coisas, nos sabores, na cor lilás sobre os lábios ou no verde suave da maquilagem sobre as pálpebras, no tato do tecido e de seus vincos e dobras, nas sombras e na luz feérica do ambiente.
Ela admira com a mesma intensidade, ou mais, ela frui o corpo do homem, então seu homem, o descuidado físico dele, uma dozena de anos a mais que dela, também uma construção, paulatina e cotidiana, realizada sem descanso. Os vincos e dobras desse corpo grisalho lhe agradam, indicam-lhe que esse homem está vivo, e que tudo o que ele mastiga e bebe, que seus convexos, do ventre, das costas, mostram muito de sua presença no mundo, tanto quanto o gesto com que ele lhe toma entre palavras e abraço resoluto, o gesto ousado que ele tem de tomar para si o que deseja.
            O homem tem os pelos dos braços e do corpo grisalhos, na barba e sobrancelhas mostra tufos negros. A pele malhada de sol parece muito clara perto da mulher, o nariz de base larga, curto e reto sobre lábios grossos. O homem é largo e, embora nem os braços sejam longos nem as mão grandes, envolvem a mulher como se ela fosse pequena e ele, muito grande.
            — Mas você aceita uma mulher bem tratada.
            Ele corre as mãos, os dedos, pelos braços dela, toma-lhe do pescoço como se tomasse uma taça, toma da libação de sua boca. Depois disso os corpos se misturam, ele a traz para si, fá-la sentar-se à cavaleiro, movimentar-se. A mulher faz uma pausa, ergue-se, sem movimento brusco, sem abandonar o posto, abre o vestido, desprega o sutiã. Abre-lhe o zíper, libera o membro, apalpa, massageia-o, afasta-se, mas só um pouco. Chupa-o. O homem segura-a com firmeza pelos cabelos da nuca, toma-lhe um seio na mão, fá-la retornar à cavaleiro. Mas não. A mulher se desfaz do vestido, afasta um pouco a calcinha, leva o sexo à boca dele. Então volta-se de costas para ele, senta, cavalga.
            Gemem baixo. Até que a mulher estremece. O homem a exorta. Mas a mulher para. Levanta-se, tira a calcinha, vira-se para ele. Fá-lo tirar a camisa. Frente a frente, torna a sentar, retoma. O homem, com as mãos na carne morena da sua bunda, não deixa que ela cesse. A mulher não cessa. O homem a alcança. Trava-lhe da cintura contra si, geme grosso. A mulher ajuda-se com os dedos, estremece de novo, ou quase. Beijam-se. Agrada à ela o roçar da barba.
Não se despegam. O homem lhe alcança um copo, é a taça de vinho o que ele alcançou, e lhe estende. Antes de devolver a taça, ele pede o que restou. A mulher abre o sorriso.
— Você é também um sensualista.
Desmonta, deita-se sobre ele. Apertados no sofá pequeno e estreito, os braços do homem a envolvem. É fresco, muito úmido o ar que vem de fora. Deixou-lhes, com o calor do movimento, a pele pourejada.
            Uma centopéia sobe o pano do sofá, mariposas pequenas na órbita da lâmpida encandescente, nenhum deles pensa em nada. Concentram-se no mundo sensorial que os cerca. A mulher gostaria de um cigarro, mas aguarda. Lentamente acomodam-se, a mulher fecha o sutiã, veste a calcinha, acerta no corpo o vestido. A mulher acomoda o membro na cueca, fecha a braguilha. Ela tem prazer em fazê-lo. O homem aprendeu a conhecer-lhe o gosto, colabora com a atuação dela.
            Esses prazeres simples que ambos se dão não impedem o incômodo que a individualidade de cada um ordena. A consciência ressalta as diferenças. Afasta deles o cotidiano, a vida comum. Por isso, não conversam sobre a última viagem do presidente Lula, sobre a proposta brasileira de modificar o padrão dólar para o G-20 na Coréia, nem sobre os canteiros e jardins abandonados pelo governo do DF, abandonados tanto quanto, calamitosamente, a rede pública hospitalar. O noticiário foi apagado quando ele chegou.
            Refeitos, sem acordo prévio, sem discussão de relacionamento, com amor, com carinho, despedem-se, na chama do abraço morno, bocas coladas. O homem entra no elevador. A mulher recolhe-se, chaveia a porta.
No térreo, o homem caminha até a entrada da quadra. Uma carroça vem pela pista vazia. O condutor, de súbito, impõe ao cavalo dobrar para a calçada. O bicho curva-se arredio para fora da pista, sacode a carroça, distanciam-se. O homem chega ao ponto, acorda o taxista de plantão.

sábado, 30 de outubro de 2010

A três dias das eleições

O homem, sentado na cadeira de armar, sob a aba descaída do chapéu de lona, olha para o nada. Parada a caminhonete entre os carros estacionados no final da comercial da quatrocentos e oito norte, a carroceria aberta, vende pequi. O rádio está mal sintonizado, a transmissão chega-lhe sob muito chiado. Ele não se move.

O fim da tarde anuncia o verão próximo; num céu de manchas escuras, o sol entra com força. Luz e claridade. A rua está movimentada. Gente que entra e sai do supermercado. A nuvem de fumaça do churrasquinho, o aglomerado de gente em volta. Pimenta, farinha, cerveja. A mistura de classes, engravatados, pés de chinelo, mães e crianças, estudantes, muitos estudantes.

Trânsito de automóveis, motos, o tumulto da hora de saída, o sinal, a faixa para o pedestre. E os pedestres, as mesas de lata pela calçada por toda a comercial. Pelos bares rua acima.
Entre chiados, o homem ouve o rádio, acaba de se iniciar a Voz do Brasil. O homem ouve os informes de todas as grandes benfeitorias do governo Lula, decantadas com estrépito nos últimos dias, estes últimos dias antes do segundo turno. Não há muita dúvida sobre a eleição de Dilma, pensa, e relembra de algumas análises que leu no caderno de economia pela manhã. Relembra que esses analistas, de modo independente, apontaram que qualquer que seja o presidente eleito, deverá, de imediato, criar um novo imposto para cobrir os exorbitantes gastos públicos do governo Lula neste ano de eleições. Uma nova CPMF, como se disse lá.

Lembra-se também de ter lido que nunca houve tanta falsificação de índices superavitários, como foi o caso da Petrobrás, que ajuntou a venda de papéis futuros no índice de seu superávit primário. Um pouco aborrecido de saber dessas coisas, e com a propaganda estatal escancarada da Voz do Brasil a três dias das eleições, o aposentado do governo federal levanta-se e vai desligar o rádio.

Senta-se. Então vê o tumulto do outro lado da rua. Um carro preto desce lentamente pela contramão. Ante à indignação dos que sobem o fluxo, o carro preto avança sobre uma e outra calçada. O que há de gente na rua para e vê a cena, uns correm até o veículo, batem no vidro, mas o carro vai seguindo, incólume, até a L2, sempre pela contramão.

Enquanto isso, ouve-se uma espécie de orquestra popular iniciar seu repertório num dos bares ali por perto. Não se vê: ouve-se apenas. O sol continua, fulgurante, mas gotas grossas de chuva começam a descer. Ninguém se espanta, ninguém foge da ameaça da água. O carro na contramão dobra para a L2, de lá segue na contramão. Muita gente corre para ver o insólito.

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Nas Nuvens





                 O jato deve ter sessenta lugares, duas filas de um lado, uma fila e o corredor do outro, o teto baixo. Sete da manhã, executivos, lobistas, mas também gente comum, em direção a Brasília. Da janela o garoto no colo da mãe contempla o colchão de plumas sob o avião, seus fiapos, seus ressaltos, seus afundamentos. Vez por outra rasgos longos. Daqueles rasgos despenham-se abismos.
                 O homem duas poltronas adiante segue o jornal, onde declara o chefe do banco central: “... ‘esse fluxo superabundante de dólares dos Estados Unidos está criando um aumento muito, muito substancial de liquidez em dólares para outros países e se tornando fonte de preocupações para os destinos da liquidez que está fluindo para alguns países específicos que tenham sistema de cambio flutuante’. Uma assessora esclareceu depois que Meirelles não estava criticando os EUA nem se referindo a cambio no Brasil, mas apenas respondendo a uma questão geral.”
                  A aeromoça serve sucos, refrigerantes, água mineral. E uma colação muito ligeira. Solapados pelo início de mais um horário de verão, a maioria dos passageiros ressona. O carrinho da aeromoça arremete contra um joelho descaído para o corredor. O homem recolhe a perna sem abrir os olhos.
                 A criança compreenderá talvez a liquidez nas nuvens; talvez por oposição à lembrança de seus últimos passos no solo do aeroporto acanhado de Campo Grande: o dia ainda estava fresco, um besouro de costas, lutando em sua lenta sina de agonia, que ele não desvirou: a mãe lhe explicara, noutra ocasião, da inutilidade do gesto nobre. Quando seu tempo alado se acaba, fugaz, o corpo pesa, as costas tombam para o chão, e então lutam, um tempo longo, incapazes de desmanchar a sina.
                 O colchão esfiapado das nuvens. Nada do enxame que o começo da invernada libera, nem percevejos nem besouros, nem mosquitos nem formigas e cupins alados dominam a atmosfera gélida, rarefeita, a liquidez quimérica das nuvens. 

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

Frango, Supremo de Frango

para Renata Bueno

Então estamos já sabidos. Nada de pizza: no judiciário tudo termina no Supremo. Supremo de frango, bem entendido. Indecisões, compra de votos, ministros que advogam sem pudor pelo dirigente Lula, e não olvidemos a disputa para indicar à vaga aberta. É uma disputa pessoal entre o dirigente Lula, a futura dirigente do politburo nacional Dilma e o responsável pelas verbas do PAC Collor, do partido das capitanias hereditárias.
Dizem que o segundo turno será uma disputa entre o partido das capitanias hereditárias, que tem 500 anos de dominação, ou posse, e o partido dos ex-escravos, com apenas 8 anos de usucapião. Mas como por aqui o mais bobo almoça três com farinha, provado está que já se emparelharam em matéria de expertize, ou esperteza.
E se antes, outrora, com o partido das capitanias hereditárias, como se dizia e se achava, o Brasil tinha dono, e os descamisados recebiam lá uma pinga para agasalhar-se, agora, com o partido dos ex-escravos, é cada um por si e o Brasil é de quem pegar.
            Farinha, muita farinha do mesmo saco é o que vai sair das urnas. E é bom que se goste de farinha, porque o frango, o frango é só do Supremo.

terça-feira, 28 de setembro de 2010

Releituras, novas impressões

Aproveito para iniciar as postagens seguindo uma sugestão da Cláudia Vasques: quinze livros. Vai uma listinha, aleatória e desigual, daquelas leituras às quais sistematicamente voltamos, de tempos em tempos, e também um pouco dessas coisas tocantes que o tempo presente nos traz, em prosa, verso e diálogos:

Writtings on Japan (coletânea) - Lafcadio Hearn
Cancioneiro - Catulo
O Asno de Ouro - Apuleio
Contos de Amor e Morte (coletanea brasileira) - Schnitzler
Diários - Lima Barreto
Viagem ao Fim da Noite - Céline
O Leopardo - Lampeduza
Os Cavalinhos da Traquínia - Duras
Auto da Barca do Inferno - Gil Vicente
Memórias de Um Sargento de Milícias - Manuel Antonio de Almeida
Miles Gloriosus - Plauto
A Farsa da Boa Preguiça - Suassuna
O Amoroso e A Terra - Afonso Félix de Souza
Vintém de Cobre - Cora Coralina
Eu - Augusto dos Anjos

Quinze livros é tudo e é nada: aí acima não há nem Camões nem Pessoa, nem DH Lawrence nem Whitman, nem Oswald de Andrade nem Camus, nem Borges nem Rulfo, nem Mil e Uma Noites ou outros anônimos, não há ensaio nem filosofia.

Quem se dispuser, faça a sua. É um retrato 3x4, em tempo real, e nada mais.